RACISMO E DESIGUALDADE
SOCIAL NA ORDEM DO DIA
Resumo:
O artigo tem por propósito fornecer subsídios para o debate
público a respeito dos temas racismo e desigualdade social. Coloca em evidência
aspectos da legislação antidiscriminatória e problematiza soluções que vêm sido
dadas.
Palavras-chave: racismo,
desigualdade social, igualdade, cor, direitos humanos.
(Jacques
d´Adesky)
I – Apresentação do
Problema
O agitado debate existente na sociedade
brasileira em torno do binômio raça e classe, coloca na centralidade do tema a
questão racismo e desigualdade social.
O racismo antinegro existente no
Brasil, embora dissimulado pelo mito da democracia racial, exclui os afro-brasileiros
da sociedade inclusiva, do direito a ter direitos, pois a intolerância racial
“ignora os afro-brasileiros, relegando-os a uma cidadania amedrontada” (Abreu,
1999, p.151).
De outra parte, se o tema central do
passado foi escravidão x liberdade, o contemporâneo, certamente, é igualdade x
desigualdade.
A extrema desigualdade social no Brasil
que tem origem nos primórdios da colonização, possui especificidades
contemporâneas produto de um processo de modernização e industrialização
excludente e de base pobre. O Brasil reveza-se com poucos outros na posição de
pior distribuição de renda do planeta. “Tão flagrante quanto a desigual
distribuição da riqueza nesta sociedade é a visível contradição (ou, talvez,
condição sine qua non, de sua
reprodução nestes moldes) entre seus graus superlativos de exclusão
(estrutural, e não conjuntural) e o mito da possibilidade da ascensão social
individual”. (Santos, 2000, p. 8)
O persistente caráter autoritário do
sistema político brasileiro, subsidiado pelo pensamento nacionalista
autoritário, associado à mitologia da democracia racial1
e da ideologia do branqueamento2, “mascara
os antagonismos raciais e desmobiliza a comunidade afro-brasileira, numa
característica estratégica de subordinação racial” (Abreu, 1999, p. 37).
A pertinência do tema é realçada pela recente conclusão da “III
Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as
Formas Conexas de Intolerância”, realizada a partir do final de agosto de 2001,
em Durban (África do Sul), cuja relatoria geral coube à brasileira Edna Roland3, com o objetivo de avaliar a situação
dos países em relação a essas temáticas, bem como elaborar recomendações de
políticas públicas para a erradicação dessas práticas e promoção e valorização
das populações discriminadas do mundo.
A conjuntura internacional, principalmente a partir dos atentados
do dia 11 de setembro de 2001, em Nova York e Washington, nos EUA, e o
acirramento dos conflitos entre a nação palestina e os israelenses, no Oriente
Médio, radicalizou as manifestações racistas e xenofóbicas, colocando a
temática do combate ao racismo e à discriminação racial, como uma questão
candente do nosso tempo.
O Direito, sobretudo nas sociedades pós-coloniais, é um
instrumento regulador, de cunho pedagógico, das relações ético-sociais. Já o
conceito e a lei dos direitos humanos fundamentais declaram que todo indivíduo
pode fazer reivindicações legítimas de determinadas liberdades e benefícios. Os
direitos humanos fundamentais são uma idéia política com base ética e estão
intimamente relacionados com os conceitos de justiça, igualdade e democracia.
Eles são uma expressão do relacionamento que deveria prevalecer entre os
membros de uma sociedade e entre indivíduos e Estados.
Os direitos humanos
fundamentais deveriam ser reconhecidos em qualquer Estado, grande ou
pequeno, pobre ou rico, independentemente do sistema social e econômico que
cada nação adote. Apesar dos vários tratados e declarações internacionalmente
assumidos, a triste realidade é que
nenhum dos direitos declarados é respeitado uniformemente no mundo inteiro.
Mas o que se deve recordar é que a própria ação estatal perde legitimidade se
os direitos básicos da pessoa humana não servirem de baliza para as decisões
tomadas em nome da coletividade. Mais do que argumentos lógicos e acadêmicos, o
que está por trás da luta pela afirmação dos Direitos Humanos é a elevação do
ser humano ao patamar de fonte última do exercício do poder estatal.
A luta pelos direitos humanos permite conferir à busca da
transformação social um sentido profundamente democrático, posto que o ser
humano torna-se sujeito e beneficiário da mudança, enquanto ao Estado é negada
a possibilidade de agir como se possuísse uma racionalidade própria e
independente capaz de justificar o exercício desimpedido do poder.
No Brasil, desde a extinção da escravidão, a comunidade
afro-brasileira não tem sido contemplada com políticas públicas de caráter
compensatório. O legado deixado pela perspectiva liberal grifou no curso da
trajetória do afro-descendente o desassossego e a pobreza. O endosso às
políticas públicas reparatórias vem no resgate à dignidade de uma comunidade
que, desde a diáspora africana, encontra-se afastada da denominada sociedade
inclusiva.
O tratamento mais favorável em razão da vulnerabilidade ou
debilidade econômico-social justifica e autoriza, ou seja, não caracteriza
arbítrio ou violação do princípio da igualdade, pelo contrário, viabiliza a
igualdade material. A superação das desigualdades – através de políticas de
redistribuição de renda e equalização de posições excessivamente desvantajosas,
denominada discriminação positiva (discrimination
positive ou positive action) ou
ainda as affirmative action, - visa
alcançar a igualdade substancial. Resulta desse aperfeiçoamento jurídico-político,
pela via da ação afirmativa, a possibilidade do afro-brasileiro pleitear o
acesso ao trabalho e à educação. Este
se constitui num mecanismo jurídico eficaz no combate à discriminação indireta
e direta, comuns nas sociedades racialmente estratificadas.
II – A Situação dos Afros-brasileiros à luz de Indicadores
Sócio-Econômicos
A exclusão do afro-brasileiro tem sido colocada em evidência por
diversas análises de natureza sociológica e antropológica, e é até mesmo
constatável a partir da simples visualização de dados estatísticos.
Filosoficamente, o agitado debate acerca da problemática igualdade x
desigualdade, enquanto ethos das sociedades democráticas, supera o ideal
liberal clássico que sustentava a igualdade enquanto valor totêmico, não desfrutado
materialmente pelos “socialmente indesejáveis”.
Algumas conclusões de relatórios de organizações de idoneidade
insuspeitável descrevem o dramático cenário do lugar do afro-brasileiro no
mercado de trabalho e na educação. A análise estatística das relações raciais
no Brasil ratifica o quanto o escravismo influenciou na estratificação social,
sobretudo na concentração racial da riqueza.
O atual censo demográfico brasileiro adotou como uma das formas de
classificação da população, o critério cor.
De acordo com tal critério os brasileiros foram classificados como: amarelos,
brancos, índios, negros e pardos. Negros e pardos no Brasil, segundo o censo,
são cerca de 45% da população, perfazendo algo em torno de 70 milhões de
pessoas. A questão cultural e étnica passa au
della dessas estatísticas. O Brasil possui a maior população negra fora da
África. É a segunda maior população negra do mundo, só inferior numericamente à
população do mais populoso país africano, a Nigéria.
Uma análise dos indicadores sociais que o IBGE publicou em 1999,
permite aferir que a população branca ocupada tinha um rendimento médio de 5
salários mínimos, enquanto os negros e pardos alcançavam valores em torno de 2
salários mínimos; ou seja, menos da metade dos rendimentos médios dos brancos.
Estas informações confirmam a existência e a manutenção de uma significativa
desigualdade de renda entre brancos, negros e pardos na sociedade brasileira.
O “Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial“
(INSPIR), em trabalho também publicado em 1999, intitulado “Mapa da População
Negra no Mercado de Trabalho”, concluiu que "os resultados da pesquisa
trazem um conjunto de informações que demonstram uma situação de reiterada
desigualdade para negros, de ambos os sexos, no mercado de trabalho das seis
regiões estudadas, independentemente da maior ou menor presença da raça negra
nestas regiões” (INSPIR, 1999).
A similitude das conclusões das duas instituições citadas
demonstra que a discriminação racial é um fato presente, cotidiano. Nenhum
outro fato, que não a utilização de critérios discriminatórios baseados na cor
dos indivíduos, pode explicar os indicadores sistematicamente desfavoráveis aos
trabalhadores negros, seja qual for o aspecto considerado.
No mesmo sentido, a “Inter-American Commission on Human Rights”
(IACHR), no relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, observa
que "a expressão principal dessas disparidades raciais é a distribuição
desigual da riqueza e de oportunidades”.
No que se refere à renda dentro do nível de pobreza, o relatório
informa que, em 1995, 50% dos negros auferiam renda mensal inferior a dois
salários mínimos (US$ 270), ao passo que 40% dos brancos estavam nessa
situação. Quanto aos salários altos, informa: ”ao passo que 16% dos brancos recebiam
mais de dez salários mínimos, a proporção entre negros era de 6%”. (IACHR, cap. IX, item a.2).
Em 2000, a ONU elaborou um programa (PNUD) para, com base na
construção de um índice, medir o desenvolvimento humano (IDH). O índice, um
indicador sintético, agregou três variáveis: renda per capita, longevidade e alfabetização combinada com a taxa de
escolaridade. Com base nesse indicador, o PNUD classificou 174 países num ranking. O Brasil ocupou o 74º lugar,
sendo considerado um país de médio índice de desenvolvimento humano.
Recentemente, estudo sobre os indicadores de desenvolvimento
humano, realizado pelo projeto “Brasil 2000 – Novos Marcos para as Relações
Raciais” (Fase), valendo-se da mesma metodologia do PNUD, mediu as disparidades
entre os grupos étnicos branco e afro-descendente. As bases de dados utilizadas
foram as da Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar (PNAD) de 19984. O estudo constatou o alto grau de
desigualdade entre negros e brancos no país.
Aplicado o mesmo indicador para a população branca, nosso país
ocupa a 49ª posição. Aplicado à população afro-descendente, o Brasil está na
escandalosa 108º posição5. O IDH,
se calculado para os brancos (0,791) colocaria o Brasil quase como um país de
desenvolvimento humano elevado (último país no ranking tem 0,801 de índice). Já se calculado para os
afro-descendentes, o Brasil teria um IDH abaixo de países africanos como a
Argélia e muito abaixo de países americanos de maioria negra como Trinidad
Tobago. Comparado à África do Sul, o Brasil estaria sete pontos abaixo desse
país, recém saído de um regime segregacionista.
O “Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas” (IPEA) mostra que
quase não mudou, desde os anos 50, a distância entre a escolaridade de brancos
e negros de mais de 25 anos. O trabalho tem como fonte a “Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios” (PNAD), de 1999. Os brancos têm sempre dois anos e meio
a mais de escolaridade. No último meio século, o padrão da discriminação
racial, no que se refere à escolaridade, manteve-se estável, concluiu Ricardo
Henriques, coordenador do estudo.
III – O Direito e o Afro-brasileiro
Mesmo diante deste quadro desolador, o legislador brasileiro,
tanto no passado quanto no presente, basicamente apenas utiliza a lei penal
para dar conta do problema da discriminação racial, sendo óbvio que não tem
alcançado o sucesso desejado, “pois a eficácia das leis antidiscriminatórias
penais é muito precária” - argumenta uma Juíza de Direito (Silva, 2001, p. 13).
De outra parte, é evidente a limitação do Direito Penal, ou mesmo
do Direito Civil, como instrumentos capazes de coibir o racismo e a
discriminação racial. No Brasil, tem-se utilizado o Direito Penal indevida e
desnecessariamente, porquanto este não pode conter elementos para suprimir a
grande deficiência das condições de concorrência, a escassez das oportunidades
de educação e de emprego, sendo a maioria dos afro-brasileiros as principais
vítimas.
Uma das causas basilares da ineficácia da legislação brasileira
antidiscriminatória é o citado mito da democracia racial, que “imposto” como
ideologia oficial contribuiu para impedir, por quase um século, que as práticas
da discriminação racial fossem criminalizadas. Muitos doutrinadores brasileiros
foram influenciados por esta contrução ideológica que parece estar sedimentada
no imaginário coletivo brasileiro.
Outro fator muito importante, que também contribui para a ineficácia de
qualquer legislação no Brasil é a cultura da impunidade.
A única legislação antidiscriminatória existente até 1988, a Lei no
1.390, de 03 de julho de 1951 – conhecida como “lei Afonso Arinos” -
considerava as manifestações de racismo meras contravenções penais,
sancionáveis com irrisórias penas de multa. O discurso oficial era de que no
Brasil não existiam problemas de discriminação, especialmente a racial.
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada a 05
de outubro de 1988, ao concretamente reconhecer
a existência do racismo, combateu a longa tradição do mascaramento do problema
através do mito da democracia racial.
Ao assim proceder, nossos constituintes contemplaram uma denúncia
sempre presentes na história das lutas do movimento negro. Entretanto, a
legislação voltou a limitar-se a apresentar como solução apenas a criminalização racial, tipificando tal prática como crime
inafiançável e imprescritível. Quanto à
calamitosa situação de pobreza que a esmagadora maioria da população negra
encontra-se reduzida, após séculos de espoliação, silenciou.
Outras sociedades que têm conflitos étnicos e raciais semelhantes
aos que existem em nosso país, quando passaram a adotar medidas concretas para
solucioná-los, somente subsidiariamente recorreram ao Direito Penal.
O estudo comparado das medidas legislativas e governamentais
adotadas por países como Estados Unidos e África do Sul, por exemplo, apontam
em sentido contrário ao caminho seguido por nosso país, vez que o Brasil
continua a privilegiar a solução penal, como se constata examinando o excessivo
aparato legal montado nesse sentido, a mingua de políticas públicas ou legislativas
de cunho social, do qual citamos dois exemplos:
1 - No plano constitucional, o artigo 5º, inciso XLII,
diz que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,
sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.
2 - No plano infraconstitucional, foi editada a Lei nº 7.616/89,
alterada pela Lei nº 9.459/97, que trata da definição dos crimes resultantes de
preconceitos de raça ou de cor, e a Lei no 9.459/97, que trata da
injuria racial, que consiste na utilização de elementos referentes à raça, cor,
etnia, religião ou origem.
Guardadas as devidas proporções e singularidades sociais,
culturais e políticas, os legisladores daqueles países (EUA, a partir dos anos
50, e África do Sul, pós apartheid) –
justamente os dois países onde as discriminações raciais foram mais assumidas
entre os seus cidadãos - primaram pela abordagem desta questão no âmbito civil
e das políticas públicas, preocupando-se com a implementação de ações
afirmativas, deixando para segundo plano a área da repressão. (Silva, 2001, p.
129)
Corroborando o acima afirmado, Ellis Cashmore, em seu Dicionário de relações étnicas e raciais,
no verbete referente à ação afirmativa, diz que ela “visa ir além da tentativa
de garantir igualdade de oportunidades individuais ao tornar crime a
discriminação, e tem como beneficiários os membros de grupos que enfrentam
preconceitos”. (Cashmore, 2000, p. 31)
IV – Algumas Conclusões
Baldadas as tentativas de se eliminar as discriminações injustas
por meio da isonomia formal contida na lei, fruto do ideário liberal consagrado
pelas revoluções do final do século XVII e XVIII, ou através de políticas
públicas collorblind (“sociedade cega
em relação à cor”):
“Tornou imperiosa a adoção de uma concepção substancial da
igualdade, que levasse em conta em sua operacionalização não apenas certas
condições fáticas e econômicas, mas também certos comportamentos inevitáveis da
convivência humana”. (Gomes, 2001, p. 3)
Nos dias presentes, foi criado um alto grau de consenso em torno
das ações afirmativas, também denominadas discriminações positivas ou ações
positivas.
Sobre o objetivo das ações afirmativas explica um membro do
Ministério Público Federal:
“Consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à
concretização do princípio constitucional da igualdade material e à
neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de
origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por
seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a
combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo
cultural, estrutural, enraizada na sociedade”.
(Gomes, 2001, p. 6-7)
Entretanto, antes que a bandeira dos direitos humanos fundamentais ou das ações afirmativas se tornem uma espécie de profissão de fé para
fundamentalistas e os politicamente alienados, vale observar que ação afirmativa – em que pese sua relevância – é apenas um dos meios que
pode ser utilizado como instrumento capaz de propiciar mobilidade social ao afro-brasileiro, sem olvidar outras
formas mais fecundas de obter justiça
social.
Assim, e por todo o exposto, considero que o Brasil ainda tem
muito o que fazer para oferecer aos afro-brasileiros pleno acesso aos direitos humanos fundamentais, sendo imperioso
colocar o tema na agenda do governo -
Federal, Estadual e Municipal – assim como na dos movimentos sociais e
no da sociedade civil como um todo.
Bibliografia:
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* O autor é advogado, associado, ex-diretor e assessor
jurídico do Instituto de Pesquisa e Culturas Negras e do Centro
Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro, professor da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes
(Ipanema). Mestrando do programa em Direito Político do Núcleo de Pesquisa e
Pós-Graduacão do Instituto Metodista Bennett.
1 Sobre “a democracia racial como mitologia”, ver Moura,
1998, p. 55.
2 Sobre “ideologia do
branqueamento”, ver d´Adesky, 2001, p. 173.
3 Dirigente da ONG
“Fala Preta!”, de mulheres negras.
4 O estudo foi
coordenado por Marcelo Paixão, professor do Instituto de Economia da UFRJ.
5 Cf. SANT´ANNA,
Wania, no artigo “Novos marcos para as relações étnico/raciais no Brasil: Uma
responsabilidade coletiva”, ano de 2000. Atualmente a autora do artigo é
Secretária Estadual do Governo Benedita da Silva, no Estado do Rio de Janeiro.