Resumo:
O artigo discute o equilíbrio de poderes entre executivo e legislativo na Câmara Municipal do Rio de Janeiro
- legislatura de 1997/1999. Enquanto o primeiro governa e atua como poder legislador, o segundo é reduzido ao
papel de figurante na produção legal. Isto ocorre porque a lei orgânica do município favorece a hipertrofia do
executivo, e cria uma série de obstáculos jurídicos a atuação independente dos vereadores em relação ao prefeito.
As evidências, entre outras, desta constatação são: 1) a produção legislativa do executivo, que é muito maior do
que o legislativo e; 2) e nos tipos de leis aprovados por poder: enquanto a produção do executivo é expressiva
nos tópicos finanças e assuntos urbanos, o legislativo se destaca na elaboração de leis em diversos campos,
como educação, utilidade pública e saúde/bem estar.
Palavras-chave: Legislativo, executivo, política brasileira, Rio de Janeiro.
Apresentamos ao leitor a seguinte
questão: a relação de poderes entre executivo e legislativo seria equilibrada
em nível municipal? Vários estudos legislativos no Brasil têm demonstrado a
hipertrofia do executivo, tanto em nível nacional quanto estadual, sendo que o
primeiro apresenta uma capacidade de legislar superior ao segundo, seja por
motivos institucionais, regimentais ou de organização política entre os poderes
executivo e legislativo.
Atualmente, o vereador tem várias
possibilidades de atuação parlamentar, desfrutando de poder decisório para
deliberar sobre remanejamento de verbas, ou alocando de recursos, visando
aprimorar a administração da cidade do Rio de Janeiro. Aos vereadores era
possível propor apenas as emendas indicativas, do tipo asfaltar uma determinada
rua, iluminar um dado logradouro ou calcar uma dada praça. Porém, a própria Lei
de Diretrizes Orçamentárias atribui ao Prefeito capacidade extraordinária de
movimentação e remanejamento para levar a termo suas prioridades.
Dada a preponderância do Executivo na maior parte das áreas de
atuação municipal, pouco resta ao vereador a quem, sem alternativas, cabe tão
somente apresentar projetos desprovidos de conteúdo político. Logo, a Câmara
Municipal do Rio de Janeiro, assim como outras Câmaras Municipais, está muito
aquém do esperado para uma instituição legislativa no processo de
democratização da sociedade e do Estado brasileiro. Estes fatos ferem uma
exigência relevante na teoria democrática: a necessária igualdade e equilíbrio
entre os poderes na competição política institucionalizada.
Neste contexto, existem enormes
diferenças na produtividade dos vereadores. Excluindo um “legislador” que
apresentou na última legislatura 88 projetos, o perfil do legislador padrão na
Câmara Municipal Carioca na legislatura de 1997/1999 seria a de um político que
apresenta em média 6 projetos pôr legislatura, sendo que uma parcela
considerável de legisladores (17%) apresentou durante o período de 1997‑1999
apenas um único projeto. O vereador que mais produziu submeteu 17 propostas de
lei à Câmara. Contudo, existe uma diferença considerável entre o número de
projetos apresentados pelo citado vereador e aquele “legislador”, autor de 88
projetos na mesma legislatura. O último aprovou cinco vezes mais leis do que um
vereador padrão. Quem seria este “legislador” ‑ obscuro e
poderoso ‑ com uma taxa de projetos aprovados tão acima da média?
Curiosamente, esse “legislador” é o Executivo
Municipal, ou seja: o prefeito Carioca.
A análise do gráfico I e da tabela I, aqui
apresentados, revela que o Executivo produz mais leis que o Legislativo,
reduzindo o último à condição de figurante no processo legal. Exemplo da
preponderância do primeiro sobre o segundo pode ser visualizado no Gráfico 1,
que descreve a produção legislativa dos três poderes na esfera municipal
carioca. Apesar da reta de evolução referente à produção do Executivo se manter
estável ao longo da legislatura, ao contrário do que ocorre com o Legislativo,
que é ascendente, frustramos os que poderiam pensar, de forma precipitada, que
a Câmara carioca é mais produtiva do que o prefeito em termos de elaboração
legal. Ou sejam, existem 344 leis sancionadas para 42 vereadores, e 88 leis
aprovadas para apenas um executivo. Na verdade, existem apenas 8 leis por
vereador no âmbito total da legislatura analisada. Em outras palavras: a
preponderância institucional do Executivo sobre o Legislativo é muito
significativa. Apesar de ser contrária ao ideal democrático de equilíbrio entre
os poderes, esta relação de poder tem amparo legal na Lei Orgânica do
Município.
No plano agregado, ou seja, não considerando a
proporção entre o número de leis e a quantidade de elementos em cada poder, o
crescimento da reta de produção legislativa no Gráfico 1 sugere uma perversa
faceta da relação (des)equilibrada entre Executivo e Legislativo. Com a
aproximação do ano eleitoral, parece que existe por parte dos legisladores uma
necessidade de provar eficiência ou, em tom coloquial, “mostrar serviço”.
Contudo, o executivo não usa esta estratégia fabril de produção de leis. Uma
possível explicação para este comportamento consiste nos fato de que os
recursos controlados pelo Executivo são muito maiores do que aqueles
disponíveis aos vereadores.
Em outros termos: o prefeito não precisa fazer leis
para cativar o eleitorado, ele pode simplesmente seduzi-lo através de obras,
tática de quem detém poder financeiro, um recurso que é mais escasso para os
vereadores.
Produção* Legislativa Na Câmara Municipal do Rio de
Janeiro: 1997‑1999
Fonte: Diretoria de Processamento
Legislativo‑ Relatório do Serviço de Acompanhamento de
Proposições,
Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
Elaboração
do Autor.
* Em
números absolutos
Já o Quadro l analisa a relação entre a
categoria de `lei aprovada' e a `iniciativa' do poder, seja ele Legislativo,
Executivo ou o Tribunal de Contas do Município (TCM). Verificamos que o
Executivo tem uma predominância na aprovação de leis relacionadas a finanças,
enquanto que o Legislativo apresenta considerável produção legal na área de
educação, saúde/bem estar e utilidade pública. Percebe‑se que esta
análise é coerente com outros estudos já realizados sobre esse tema no âmbito
do Legislativo federal, onde o Executivo produz leis econômicas, enquanto os
deputados federais apresentam mais leis na área social.
Quadro I
Poder/Tipo de Lei |
Legislativo |
Executivo |
TCM |
Totais |
Finanças |
2, 0 |
40,9 |
50,0 |
10,2 |
Assuntos Urbanos |
6,4 |
19,3 |
- |
9,0 |
Educação |
12,9 |
3,4 |
- |
10,9 |
Saúde/Bem estar |
11,1 |
1,1 |
- |
9,0 |
Utilidade Publica |
27,5 |
3,4 |
- |
22,5 |
Nome de Rua |
12,6 |
- |
- |
10,0 |
Outros
|
27,5 |
31,8 |
50,0 |
28,5 |
Totais |
100,0 |
100,0 |
100,0 |
100,0 |
Fonte: Diretoria de
Processamento Legislativo‑ Relatório do Serviço de Acompanhamento de
Proposições,
Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
Elaboração
do Autor.
Um outro ponto de destaque no Quadro I
consiste no expressivo percentual da categoria "Outros". O critério
para definição dos tipos de legislação foi baseado nas áreas temáticas das
comissões permanentes. Porém, existem leis de difícil classificação, tal como a
de n° 2625/ 1999, que proíbe a concessão de alvarás às empresas que fazem
clonagem de seres humanos no município do Rio de Janeiro. A mesma dificuldade
classificatória atinge a lei n° 2958/1999, que determina que as letras do Hino
Nacional e da Bandeira da República Federativa do Brasil sejam escritas no
verso dos cadernos editados em solo carioca; enquanto a lei n° 2943/1999
declara persona non grata o ex‑presidente do Chile, Augusto
Pinochet. Este mosaico de leis de conteúdo externo aos temas das comissões foi
agregado no rótulo “outros”.
Destacamos também as leis de utilidade pública, que abrangem 27,5% de todas as leis sancionadas pelos vereadores. Qualquer entidade que seja considerada como tal, recebe benefícios indiretos do município, como a utilização de `próprios municipais', ou seja, imóveis do município que poderão ser ocupados sem pagamento de aluguel. Percebemos que as entidades consideradas como de utilidade pública costumam ser aquelas que apoiam e são apoiadas pelo prefeito, ou que pertençam à base eleitoral do vereador. Como exemplo, poderíamos citar a Fundação Roberto Marinho, beneficiada através da lei 2759/1999’; ou a Associação Cultural a Beneficente Beith Lubavitch, lei n° 2T58/1999, elaborada pelo presidente da Câmara Municipal, Gerson Bergher. Destaco: uma vez considerada de utilidade pública, a entidade em questão tem o direito a receber subvenções de diversas naturezas nos níveis estaduais e federais.
Em resumo, neste estudo em que analisamos a relação de poder entre o Executivo e o Legislativo na Câmara Municipal Carioca, destaco a existência de um arcabouço institucional que impede o equilíbrio de forças entre os citados poderes: a constituição municipal garante ao prefeito significativas vantagens na produção legislativa, e cria obstáculos à pratica legislativa dos partidos não governistas. Logo, no município do Rio de Janeiro, é o Executivo que exerce de fato o papel de legislativo.
Então, salve vossa excelência, o
Executivo Municipal Carioca.
1 Este artigo é uma versão radicalmente reformulada de um texto anterior, escrito em conjunto com Fátima Lampreia Carvalho.
*
Professor do Departamento de Ciência Política do IFCS/UFRJ, docente do Curso
de Especialização em Avaliação Educacional da UERJ e pesquisador do Laboratório
de Avaliação Educacional da PUC/RJ.
O argumento aqui apresentado, incluindo possíveis falhas e limitações, é de inteira responsabilidade do autor – ou seja: este trabalho não representa nenhum parecer de qualquer natureza tanto da Câmara Municipal da cidade do Rio de Janeiro, quanto das instituições acadêmicas as quais o autor está vinculado.